O Reconhecimento Facial e a Biometria no Acesso a Edificações: Direitos, Deveres e a Proteção de Dados no Cenário Imobiliário e Consumerista
O avanço tecnológico tem transformado as relações sociais e jurídicas, e o uso do reconhecimento facial e outras tecnologias biométricas para controle de acesso em edifícios residenciais e comerciais é um exemplo claro dessa mudança. Se, por um lado, essas tecnologias prometem maior segurança e comodidade, por outro, suscitam importantes questionamentos sobre a privacidade, a liberdade individual e os direitos dos cidadãos. Este artigo explora as implicações jurídicas do reconhecimento facial no contexto do direito imobiliário e do consumidor, à luz da Constituição Federal, do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor e, especialmente, da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
1. O Direito à Privacidade e a Dignidade da Pessoa Humana na Constituição Federal
A Constituição Federal de 1988 é o pilar do ordenamento jurídico brasileiro, e nela encontramos princípios e garantias fundamentais que balizam o debate sobre o reconhecimento facial. O artigo 5º, inciso X, da CF/88, assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, garantindo o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
A imagem e os dados biométricos, como o reconhecimento facial, são informações sensíveis e profundamente ligadas à identidade e à privacidade do indivíduo. A exigência de ceder o rosto para acesso a um prédio, seja ele residencial (condomínio) ou comercial (acesso a escritórios, por exemplo), precisa ser analisada sob a ótica da proporcionalidade e da necessidade. Não se pode admitir uma imposição que viole de forma desmedida a privacidade dos moradores, visitantes ou prestadores de serviço, sem uma justificativa clara, legítima e amparada por lei. A dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, CF), exige que qualquer medida de segurança que envolva coleta de dados sensíveis seja implementada com o máximo respeito aos direitos individuais.
2. O Código Civil: Propriedade, Condomínio e o Exercício Regular de um Direito
No âmbito do Direito Imobiliário, o Código Civil (Lei nº 10.406/2002) disciplina a propriedade, o direito de vizinhança e, de forma relevante para este tema, o condomínio edilício (arts. 1.331 a 1.358).
Em um condomínio, a implementação de sistemas de reconhecimento facial deve considerar a vontade coletiva. A decisão sobre a adoção de tal tecnologia, especialmente quando implica a coleta de dados sensíveis dos condôminos, deve ser tomada em assembleia, respeitando os quóruns estabelecidos pela convenção do condomínio e pela lei. Geralmente, para alterações significativas que afetem o direito de propriedade ou a rotina dos condôminos, um quórum qualificado é exigido.
Ademais, o uso de tecnologias de acesso deve estar em conformidade com o exercício regular de um direito (art. 188, inciso I, CC). Ou seja, o sistema deve visar à segurança do condomínio e de seus ocupantes, mas não pode se tornar um abuso de direito que restrinja indevidamente o acesso ou a liberdade dos indivíduos. A imposição de um sistema de reconhecimento facial, sem alternativas razoáveis de acesso para aqueles que não desejam ou não podem ceder seus dados biométricos, pode ser questionada judicialmente como um exercício abusivo do direito de propriedade ou como uma violação do direito de ir e vir.
Para visitantes e prestadores de serviço, a situação é mais complexa, pois não há uma relação de propriedade direta com o condomínio. A imposição da biometria facial para esses grupos requer uma análise ainda mais rigorosa da necessidade e da existência de alternativas.
3. O Código de Defesa do Consumidor: Relações de Consumo e Vulnerabilidade
Embora o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) não se aplique diretamente às relações puramente condominiais entre condôminos, sua aplicação é relevante quando há uma prestação de serviço em questão. Por exemplo, se uma empresa de segurança ou um fornecedor de sistema de acesso é contratado pelo condomínio e essa relação afeta os condôminos ou terceiros (visitantes, entregadores) como consumidores finais de um serviço de segurança e controle de acesso, as disposições do CDC podem ser invocadas.
O CDC protege o consumidor de práticas abusivas e garante o direito à informação clara e adequada sobre os serviços prestados (art. 6º, inciso III). No contexto do reconhecimento facial, isso significa que os condôminos devem ser informados de forma transparente sobre a finalidade da coleta dos dados biométricos, como eles serão armazenados, por quanto tempo e quem terá acesso a eles. A vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, inciso I, CDC) é um princípio fundamental, e a ausência de alternativas de acesso ou a coleta de dados sensíveis sem consentimento adequado pode configurar uma prática abusiva.
4. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD): O Cenário Crucial da Proteção de Dados Sensíveis
A Lei nº 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), é a legislação mais relevante e específica para tratar da coleta e tratamento de dados biométricos. Dados biométricos, como o reconhecimento facial, são classificados como dados sensíveis pelo artigo 5º, inciso II, da LGPD, o que impõe um regime de proteção mais rigoroso.
A LGPD estabelece que o tratamento de dados pessoais, especialmente os sensíveis, só pode ocorrer mediante o consentimento expresso do titular (art. 11, inciso I) ou em outras bases legais específicas. Para o reconhecimento facial em edifícios, as bases legais mais prováveis a serem consideradas são:
- Consentimento do Titular: Para condôminos e, em alguns casos, visitantes, o consentimento livre, informado e inequívoco é fundamental. É importante que o consentimento seja específico para a finalidade de acesso ao prédio e que o titular possa revogá-lo a qualquer momento, exigindo que o condomínio ofereça uma alternativa viável de acesso.
- Cumprimento de Obrigação Legal ou Regulatória: Menos comum para o caso de acesso a edifícios, mas pode haver situações excepcionais.
- Execução de Contrato ou Procedimentos Preliminares: Pode ser aplicável à relação entre locatário e proprietário, ou empregado e empresa, se o acesso for parte integrante do contrato de trabalho ou locação, desde que haja clareza nas finalidades.
- Exercício Regular de Direitos em Processo Judicial, Administrativo ou Arbitral: Não se aplica ao controle de acesso rotineiro.
- Proteção da Vida ou Incolumidade Física do Titular ou Terceiro: Em situações de emergência ou em locais de altíssimo risco, pode justificar, mas a regra geral é o consentimento.
- Garantia da Prevenção à Fraude e à Segurança dos Sistemas de Acesso: Essa base legal (art. 11, inciso II, alínea “g”) é frequentemente invocada. No entanto, deve ser analisada com cautela, pois não justifica a coleta indiscriminada ou a imposição sem alternativas. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tem sinalizado que essa base deve ser usada para fins muito específicos e não como uma “carta branca” para qualquer coleta.
Além da base legal, a LGPD impõe deveres aos controladores dos dados (no caso, o condomínio ou a empresa gestora do edifício), como:
- Finalidade Específica e Legítima: Os dados só podem ser coletados para o fim de controle de acesso e segurança do edifício. Qualquer outra utilização é proibida.
- Adequação e Necessidade: A coleta deve ser adequada e limitada ao mínimo necessário para a finalidade.
- Transparência: Os titulares dos dados devem ser informados sobre como seus dados são coletados, usados, armazenados e compartilhados.
- Segurança: Devem ser implementadas medidas de segurança técnicas e administrativas para proteger os dados contra acessos não autorizados, perdas, destruição ou tratamento inadequado.
- Direitos dos Titulares: Os titulares dos dados (condôminos, visitantes) têm o direito de acessar seus dados, corrigi-los, solicitar sua eliminação (se não houver outra base legal que justifique a manutenção), revogar o consentimento, entre outros (art. 18, LGPD).
A não conformidade com a LGPD pode acarretar sanções administrativas severas, incluindo multas de até 2% do faturamento da empresa (ou grupo econômico) no Brasil no seu último exercício, limitadas a R$ 50 milhões por infração, além de outras penalidades como publicização da infração e bloqueio ou eliminação dos dados pessoais a que se refere a infração (art. 52, LGPD).
A implementação de sistemas de reconhecimento facial para acesso a edifícios, embora atraente pela promessa de maior segurança e eficiência, exige uma análise jurídica minuciosa e a observância rigorosa das leis brasileiras. A privacidade dos indivíduos, consagrada na Constituição Federal, e a proteção de dados sensíveis, detalhada na LGPD, devem ser a prioridade.
Condomínios e administradoras de edifícios devem buscar o consentimento informado dos condôminos e usuários, oferecer alternativas de acesso para aqueles que não desejam ceder seus dados biométricos e garantir a mais alta segurança no tratamento dessas informações. O diálogo transparente e a busca por soluções que conciliem a segurança com o respeito aos direitos fundamentais são essenciais para uma convivência harmoniosa entre tecnologia, direito imobiliário e os direitos do consumidor na era digital. A atenção a essas normativas não é apenas uma questão de cumprimento legal, mas um imperativo ético na gestão da privacidade individual.

Dr. Cláudio Manoel Molina Boriola, advogado pós-graduado e fundador do escritório que leva seu nome, é amplamente reconhecido por sua atuação especializada em Direito Civil, Direito do Consumidor, Direito Processual Civil, Direito de Família, Direito Bancário, Direito Imobiliário e Direito Condominial. Com vasta experiência no cenário jurídico nacional, oferece assessoria jurídica de excelência, pautada em soluções estratégicas e personalizadas. O escritório Boriola destaca-se pelo compromisso com a qualidade e a busca incessante pelos melhores resultados para seus clientes. Para mais informações sobre nossos serviços e áreas de atuação, entre em contato e descubra como podemos auxiliar com expertise e dedicação.